Introdução
Se por um lado os processos inflamatórios estão presentes em diversas doenças neurológicas, por outro há doenças em que a inflamação é o agente central da fisiopatologia.
Organismos vivos são continuamente invadidos. A isso damos o nome de infecção. A evolução propiciou o desenvolvimento do sistema imunológico, com a finalidade de proteger os organismos de infecções. A inflamação é um conjunto de processos celulares e bioquímicos que ocorre durante a resposta imune e é responsável por grande parte dos sintomas que são observados.
Virtualmente qualquer sistema pode ser vítima de infecção. Sistemas com maior contato com o meio externo, como o sistema respiratório e o gênito-urinário, são vítimas mais frequentes. Outros são mais protegidos. Esse é o caso do Sistema Nervoso Central, que tem uma camada extra de proteção, chamada de barreira hematoencefálica, que o isola do resto do organismo e o torna menos susceptível a agressores externos.
Apesar dessa camada protetora extra, ainda assim o SNC é susceptível a processos infecciosos, que podemos classificar como agudos e crônicos.
Infecções agudas
Consideramos agudas as infecções que têm um tempo de evolução curto, que vai de dias a poucas semanas. Pode acontecer em qualquer lugar do SNC, mas o sítio mais comum é nos seus revestimentos, chamados de meninges. Três meninges revestem todo o SNC (incluindo encéfalo e medula espinhal). A mais superficial é também a mais resistente e espessa, chamada dura-mater. A intermediária se chama aracnoide e, a mais profunda e fina, pia-mater. As duas juntas compõe de leptomeninge e são o lugar preferencial dos agentes infecciosos. (ROPPER et al., 2019 (1))
Na grande maioria das vezes, a infecção se restringe às meninges. Nesse caso, recebe o nome de meningite. As meningites agudas têm evolução de dias a poucas semanas e se manifestam clinicamente por uma ampla gama de sintomas. Quatro deles são mais comuns. (BECKHAM et al., 2016, TUNKELL, 2018)
O sintoma mais comum de meningite é a cefaleia, que pode variar bastante em característica de acordo com o agente causador e a gravidade do quadro. Está presente em cerca de 90 porcento dos casos. No entanto, dor de cabeça sozinha não tem muita utilidade para o diagnóstico de meningite na prática clínica, pois pode surgir em inúmeras situações clínicas.
Assim, para pensar no diagnóstico de meningite aguda, precisamos nos amparar nos outros três sintomas mais comuns, que são rigidez de nuca, febre e alteração do estado mental. É muito raro que um indivíduo tenha meningite se não tiver qualquer um desses três sintomas
A rigidez de nuca acontece pelo processo inflamatório das meninges. Nela ocorre um aumento do tônus muscular da parte posterior do pescoço, quando é flexionado para frente. Nessa ocasião, pode haver uma dor na coluna e sensação de retração das pernas.
A febre é outro sintoma comum, mas pode variar de acordo com os agentes causadores. De modo geral, meningites bacterianas tendem a levar a temperaturas mais altas, enquanto as virais fazem febres baixas ou febrículas.
Alteração no estado mental tem diversas manifestações, como lentidão do raciocínio e alteração de memória, sonolência (que pode variar em grau), confusão mental, podendo chegar até em estupor e coma nos casos mais graves. Essas alterações, refletem uma disfunção do encéfalo causada pelos agentes. Usamos o termo meningoencefalite para designar uma meningite com disfunção encefálica. (TUNKELL, 2018)
Outros sintomas vistos em meningoencefalites agudas são crises epilépticas, déficits neurológicos focais (como perda de força, sensibilidade, coordenação em parte do corpo), perda auditiva, entre outros.
Os principais agentes causadores de meningites ou meningoencefalites são os vírus e as bactérias.
Virais
Vírus são microrganismos unicelulares sem núcleo que necessitam de infectar outros seres para se multiplicar. Diversas espécies de vírus infectam os seres humanos e uma parte importante delas tem preferência por células do sistema nervoso (também chamado de neurotropismo). Elas podem causar danos agudos no sistema nervoso ou ficar latentes nas suas células após infectá-las, reativando-se em oportunidades futuras (geralmente quando há um desequilíbrio no organismo com redução da resposta imune).
Meningites e meningoencefalites virais (BECKHAM et al., 2016; LYONS, 2018)
Entre as causas de meningites, as de etiologia viral são as mais comuns. Praticamente qualquer vírus que pode atingir os outros sistemas do corpo podem causar uma meningite viral. Os enterovírus, que tem esse nome pois adentram os organismos por meio do intestino, são a causa mais comum de meningite viral (cerca de 80% dos casos). São um gênero com uma ampla gama de espécies que podem causar meningite e, de modo geral, os seus sintomas são leves.
A forma mais comum de manifestação é uma mistura variável dos 4 principais sintomas da meningite (cefaleia, febre, rigidez de nuca e alteração do estado mental). Na maioria das vezes os sintomas são tênues e podem se confundir com uma infecção viral comum de outros sistemas. De maneira geral, esses casos são tratados somente com medicamentos sintomáticos.
Qualquer tipo de vírus pode causar sintomas mais graves. Contudo, há algumas espécies que tem maior propensão de causar quadros graves.
Outros tipos de vírus causam meningite menos frequentemente do que os enterovírus. Arboviroses, que são vírus transmitidos por um hospedeiro, normalmente um mosquito ou carrapato, também causam meningite. Exemplos presentes no Brasil são o vírus da dengue, chikungunya e da zika. Documentou-se que esse último tem um efeito patológico na formação do Sistema Nervoso de fetos ao infectar as gestantes, causando microcefalia e implicando em retado no desenvolvimento dessas crianças.
A família de vírus herpes é uma outra causa muito comum de doenças do sistema nervoso. Os vírus mais implicados são os Herpes Simplex tipos 1 e 2 e o varicela zoster. O herpes simplex tipo 1 é o causador de uma das meningoencefalites virais de maior gravidade. Alteração do nível da consciência, crises epilépticas e alterações comportamentais são alguns dos sintomas comumente observados. Na evolução, o paciente pode evoluir com estado de mal convulsivo e coma. Se não tratada a tempo, a taxa de mortalidade supera os 70%.
O Herpes Simplex tipo 2 não causa encefalite com frequência. Por outro lado, é uma de meningites de repetição, chamada de síndrome de Mollaret. Já o Herpes Zoster, pode também causar meningite, mas a sua manifestação mais comum é no sistema nervoso periférico. Quando reativado, ele frequentemente produz inflamação nos nervos, causando uma dor muito intensa, chamada de neuralgia herpética.
Muitos outros tipos de vírus podem afetar o sistema nervoso central. Alguns exemplos são os vírus do sarampo, caxumba, raiva, rubéola, entre outros. Cada um tem formas mais específicas de se manifestar, podendo ter alta gravidade.
Bacterianas
Apesar das meningites virais serem mais comuns, as que levam ao quadro clínico mais típico são as bacterianas. Os sintomas mais comuns são os mesmos: cefaleia, febre, rigidez de nuca e alteração de nível de consciência. No entanto, nas causas bacterianas, são mais intensos e claramente marcados.
As bactérias chegam ao sistema nervoso central por duas formas. Mais frequentemente, acontece por disseminação através da corrente sanguínea (hematogênica). O patógeno já está presente em outros sistemas do organismo (geralmente no trato respiratório ou na corrente sanguínea) e acaba rompendo a barreira hematoencefálica. A disseminação também pode ocorrer por contiguidade, ou seja, a bactéria está alojada em uma estrutura próxima às meninges, como nos seios paranasais, nos ouvidos ou nas mastoides, e se dissemina através das paredes ósseas até encontrar as meninges. Também pode ser causada por procedimentos cirúrgicos no crânio. (ROPPER et al., 2019 (2), ANDERSON et al., 2016)
Muitas espécies diferentes de bactérias podem causar meningite, mas duas são as mais comuns. A mais comum é a Streptococcus pneumoniae (ou pneumococo), que é o mesmo agente de grande parte das pneumonias, sinusites e otites. Quando causa meningite, os sintomas podem ser bastante agressivos e, se não tratada a tempo, pode haver complicações graves, como crises epilépticas, Acidente Vascular Cerebral (AVC) e até a morte. É uma bactéria que na maior parte das vezes é sensível aos antibióticos padrão, como as cefalosporinas de terceira geração, mas já há casos de resistência a antibiótico. Por isso, em casos graves ou em lugares com alta frequência de bactérias resistentes, recomenda-se associar um segundo antibiótico ao tratamento empírico (antes de se identificar o agente). (HASBUN, 2020)
O segundo agente mais comum a causar meningite bacteriana é o Nesseria meningitidis (também chamada de meningococo), uma bactéria de baixa resistência a antibióticos, que causa um quadro típico de meningite aguda. A gravidade das meningites causadas pelo meningococo tende a ser menor do que a do pneumococo e o tratamento costuma a ser mais fácil. Contudo, deve-se ficar atento com a possibilidade de um quadro potencialmente fatal, chamado de meningococcemia. Nesses casos, há disseminação da bactéria por todo o organismo, causando um quadro grave de sepse que leva a óbito se não tratado a tempo. (HASBUN, 2020) Curiosamente, a presença de meningite, melhora o prognóstico da meningococcemia.
Há ainda um terceiro agente, chamado de Haemophilus influenza, que costumava a ser um dos principais causadores de meningite bacteriana, levando frequentemente a formas graves da doença. Após o início da vacinação em massa contra essa bactéria, as taxas de meningite caíram dramaticamente e, hoje, não está mais elencada entre os principais tipos de meningite. (HASBUN, 2020)
Outros agentes merecem atenção, como a Listeria sp., que afeta especialmente pessoas imunossuprimidas e idosos causando inflamação e disfunção em estruturas do tronco cerebral (rombencefalite); os enterococos, que afetam principalmente recém nascidos, o Staphilococcus Aureus, que é um agente de pele com alta taxa de resistência bacteriana, que pode causar meningite no contexto de pós-operatório de procedimentos neurocirúrgicos.
Em breve a segunda parte, sobre infecções crônicas!
Forte abraço,
REFERÊNCIAS
ANDERSON, N. C.; KOSHY, A. A.; ROOS, K. L. Bacterial, Fungal and Parasitic Diseases of the Nervous System. In.DAROFF, R. B.; JANKOVIC, J.; MAZZIOTTA, J. C.; POMEROY, S. L. Bradley’s Neurology in Clinical Practice. London: Elsevier, 2016, p. 1147-1158.
BECKHAM, J. D.; SOLBRIG, M. V.; TYLER, K. L. Viral Encephalitis and Meningitis. In.DAROFF, R. B.; JANKOVIC, J.; MAZZIOTTA, J. C.; POMEROY, S. L. Bradley’s Neurology in Clinical Practice. London: Elsevier, 2016, p. 1121-1146.
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Importante trabalho. Parabéns.