Infecções crônicas do Sistema Nervoso Central
Alguns agentes infecciosos se comportam de maneira distinta das meningites comuns ao atingir o sistema nervoso central. Reproduzem-se de maneira mais lenta e causam um processo infeccioso mais tênue, com evolução ao longo de semanas a meses. Por esse motivo, os sintomas clássicos de meningites agudas são menos presentes. Por exemplo, o paciente pode ter uma cefaleia leve isolada, com evolução lenta ao longo de muitas semanas, para só então apresentar um aumento de temperatura ou rigidez de nuca. Ou pode ficar assintomático por meses antes de começar a se tornar desorientado. Sintomas que são atípicos nas meningites agudas são mais comuns nas crônicas, como alterações de nervos cranianos, inflamações nos vasos (vasculites) e alteração comportamental.
Algumas bactérias e quase todos os fungos e protozoários que atingem o sistema nervoso central causam o padrão crônico de infecção. No Brasil, os agentes relevantes são o Mycobacterium tuberculosis (causador de tuberculose) e o Treponema pallidum (causador de sífilis), ambos bactérias com lenta multiplicação e que permanecem no organismo por anos antes de causar os primeiros sintomas. Fungos, como o criptococo e protozoários, como o Toxoplasma gondii e o Taenia solium (causador da neurocisticercose) também causam inflamações crônicas no SNC.
Por estes agentes terem baixa infectividade e lenta multiplicação, organismos imunocompetentes são capazes de suprimi-los e impedir que a doença se manifeste clinicamente na maior parte dos casos. Em pessoas imunossuprimidas, seja por medicamentos, neoplasias hematológicas ou síndrome da imunodeficiência adquirida (causado por HIV), o risco de doença no SNC é significativamente maior.
Sífilis
A sífilis é causada por uma bactéria em formato de espiral (ordem das espiroquetas) chamada Treponema pallidum. Ela entra em contato com o organismo infectado principalmente por transmissão sexual (mas pode ocorrer de forma transplacentária ou por transfusão sanguínea) e causa um quadro clínico que varia de acordo com o estágio da doença e que pode acometer praticamente qualquer sistema.
Classifica-se a sífilis, conforme o tempo da infecção, em precoce e tardia. Considera-se precoce o intervalo de um ano após o início infecção e tardio o período após o primeiro ano. Uma segunda forma de classificar a evolução da doença é conforme a manifestação clínica: sífilis primária, secundária, latente e terciária. Os estágios primário e secundário ocorrem na fase precoce da sífilis. O latente pode acontecer em ambas as fases precoce e tardia e a terciária normalmente ocorre na fase tardia. (HICKS & CLEMENTS, 2020)
A sífilis primária ocorre logo após a inoculação da espiroqueta, em cujo sítio pode se desenvolver uma lesão crostosa, não dolorosa e não exsudativa (chamada popularmente de cancro duro). É mais frequente que a lesão apareça no órgão genital, mas pode aparecer em outras mucosas ou mesmo não se manifestar.
A sífilis secundária surge de semanas a poucos meses após o desaparecimento do cancro em cerca de um quarto dos pacientes não tratados. Manifesta-se por sintomas constitucionais (febre, cefaleia, mal estar, perda ponderal, etc.), linfadenopatia e alterações em praticamente todos os sistemas, incluindo exantemas cutâneos característicos, alterações gastrointestinais, articulares e renais. (HICKS & CLEMENTS, 2020)
O sistema nervoso central e periférico também podem ser atingidos nessa fase da doença. É frequente o desenvolvimento de um quadro de dor de cabeça ao longo de semanas a meses. Outro achado comum é a meningite subaguda ou crônica (meningite sifilítica), que pode vir associada a disfunção de nervos cranianos e inflamação dos vasos intracranianos (sífilis meningovascular), podendo ocasionar AVC isquêmico. Os olhos também são frequentemente atingidos (sífilis ocular) e praticamente qualquer forma de acometimento ocular pode ocorrer. (ROPPER et al., 2019 (2); BORGES et al., 2019; MARRA, 2020)
Indivíduos com a sífilis, mesmo que não tratados, frequentemente evoluem para a fase latente, em que o treponema permanece inativo. Quando isso ocorre, podem permanecer assintomáticos por muitos anos ou nunca desenvolverem a doença terciária.
Chamamos de sífilis tardia o período que supera 1 ano após a inoculação da espiroqueta. Alguns pacientes não tratados podem desenvolver a sífilis terciária nesse período. São três as principais formas da sífilis terciária: a cardiovascular, a gumatosa e o envolvimento do sistema nervoso central.
A meningite sifilítica, a forma meningovascular e a forma oftálmica também podem acontecer em qualquer momento na fase tardia. No entanto, nessa fase, geralmente após muitos anos a décadas da infecção inicial, podem ocorrer manifestações clássicas: a paresia geral sifilítica e a Tabes Dorsalis. Felizmente, após o advento dos antibióticos essas formas clínicas da sífilis se tornaram raridade.
A paresia geral sifilítica acontece geralmente de 10 a 25 anos após a infecção inicial. Nela ocorre um quadro demencial lentamente progressivo, que pode se manifestar com sintomas de humor, mania e sintomas psicóticos. Por essas características, frequentemente é confundida com demências de causa neurodegenerativa (como a Doença de Alzheimer e a Demência Frontotemporal) ou com transtornos psiquiátricos (como o transtorno bipolar e a esquizofrenia). Na evolução também podem-se observar tremores e redução global do tônus muscular e o indivíduo progressivamente se torna restrito ao leito. (ROPPER et al., 2019(2))
Tabes Dorsalis é uma doença da medula espinhal, que atinge a coluna posterior, estrutura por onde passam os nervos sensitivos responsáveis pela propriocepção consciente. O tempo desde o início da doença é mais longo, com uma mediana de cerca de 20 anos. O principal sintoma é ataxia sensitiva, que consiste em uma franca dificuldade de permanecer um pé por conta da ausência de feedback sensitivo das terminações nervosas. Também podem ocorrer dores lancinantes em várias partes do corpo e alterações do reflexo pupilar (pupilas de Agyl-Robertsen) (ROPPER et al., 2019 (2).
Tuberculose
A tuberculose é causada por uma bactéria chamada Mycobacterium tuberculosis. Ela entra em contato com o organismo por meio de aerossóis, atingindo os alvéolos pulmonares. É um bacilo que se reproduz lentamente, mas que gera uma forte resposta inflamatória no portador. Uma minoria de indivíduos consegue se livrar imediatamente da bactéria, através da resposta imune inata, sem desenvolver a doença, e outros acabam desenvolvendo a forma primária da doença.
Essas pessoas reagem ao patógeno por meio de uma resposta imune mediada por células. Quando os bacilos chegam aos alvéolos, macrófagos os englobam, formando granulomas. Algumas bactérias acabam escapando para a corrente sanguínea, mas são contidas em linfonodos regionais, onde há uma nova resposta inflamatória. Esses linfonodos ficam aumentados e inflamados na ocasião. Essa resposta imune é favorável na grande maioria dos indivíduos (90%), inativando a micobactéria. Quando latente, o bacilo permanece sem causar a doença na maioria dos indivíduos. (RILEY, 2019)
Contudo, especialmente em situações de imunodeficiência, como a infecção pelo HIV, tratamentos imunossupressores e estados gerais debilitados, a bactéria pode se reativar.
Em cerca de um décimo dos casos, a resposta imune celular do hospedeiro não favorável, permitindo que a micobactéria se dissemine pelos pulmões, causando destruição dos tecidos e consequente comprometimento funcional. Tosse e falta de ar progressivas são sintomas comuns. Caso a doença ativa não seja tratada, a taxa de mortalidade é de cerca de 80% dos casos. (RILEY, 2019)
A doença também pode se disseminar pelos linfonodos regionais e por outros sistemas, como os sistemas digestório, cardiovascular e o nervoso central. Chegando a outros tecidos, os bacilos também acabam desencadeando uma resposta imune potente, que forma granulomas por toda a extensão.
Diferentemente da forma de disseminação de outras bactérias, que causam a meningite por mecanismo hematogênico ou por contiguidade, o bacilo da tuberculose se implanta gradualmente nas meninges e nas regiões subpiais (que ficam abaixo da pia mater), formando tubérculos (massas granulomatosas). Quando um ou mais tubérculos se rompem, a micobactéria se dissemina pelos espaços subaracnóideos causando a meningite tuberculosa. (ROPPER et al., 2019 (2); ZANT (2018))
A meningite tuberculosa tem maior predisposição a acometer as meninges da fossa posterior do que a convexidade cerebral. Clinicamente evolui mais lentamente do que uma meningite viral ou bacteriana, com tempos de evolução maiores do que uma semana, que podem chegar a meses. As manifestações iniciais são febre baixa, cefaleia, rigidez de nuca e mal estar progressivos, mas também confusão, letargia e coma.
Pelo acometimento predominante das meninges da base do encéfalo, paralisia de pares cranianos também pode acontecer (alteração de movimentos oculares, paralisia facial, perda auditiva, entre outros). Como o bacilo também afeta regiões ependimárias, responsáveis pela produção de líquido cefalorraquidiano, granulomas também podem adentrar os ventrículos cerebrais, causando ventriculite e hidrocefalia não comunicante. Por haver contato das meninges inflamadas com os vasos cerebrais, acidente vascular cerebral também pode acontecer. (ROPPER et al. , 2019 (2))
Além da meningite, a tuberculose pode se manifestar de outras formas no sistema nervoso. Os tuberculomas são massas que parecem tumores e que tem tamanhos variáveis de 2 a 12 milímetros em média. Os principais problemas que podem causar são a distorção do parênquima cerebral, que pode levar a hidrocefalia e causar déficits neurológicos focais.
Mielorradiculite é uma inflamação da meninge, da medula e das raízes nervosas próximas. Pode haver disfunção de raízes nervosas, que causam dores e alteração de força e sensibilidade nos membros. A inflamação da medula (mielite) geralmente atinge as colunas posterior e lateral, por onde passam fibras nervosas também responsáveis por sensibilidade e força
Encontra-se tuberculose ativa em outros sistemas em cerca de dois terços dos pacientes com meningite tuberculosa. Na maioria das vezes o outro foco é pulmonar, mas também podem-se encontrar focos em outros órgãos, como intestino, ossos e rins. Presença de imunossupressão, além de aumentar a chance de reativação da doença, pode acelerar a evolução clínica. (ROPPER, 2019 (2))
Caso o paciente não seja tratado, a neurotuberculose evoluiu progressivamente de sinais de hipertensão intracraniana, disfunção de pares cranianos e outros sintomas neurológicos focais e com rebaixamento de nível de consciência e coma. Em média, o paciente vai a óbito em 4 a 8 semanas a contar do início dos sintomas neurológicos. O tratamento deve ser prolongado em comparação com as outras formas de meningite, mas pode mudar radicalmente a evolução natural da doença se feito a tempo.
REFERÊNCIAS
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